quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

domingo, 16 de dezembro de 2018

Meus filmes preferidos de 2018

A cada final de ano escolho os dez filmes de que mais gostei, mas em 2018 só consegui juntar sete. Título, diretor e breve comentário: 

1º) Três anúncios para um crime (Martin McDonagh) 
Nunca foi tão fácil escolher o preferido do ano, disparado acima dos demais. Um improvável estudo sobre a caridade e o perdão, marcado pela violência e pela bizarrice. Fiz um comentário mais extenso para a Amálgama, no link abaixo:








2º) Maria Madalena (Garth Davis) 
Pelo que pude ver, o filme desagradou tanto a cristãos quanto a ateus; na melhor das hipóteses, foi desprezado. Por isso, vale um comentário um pouco mais extenso. Concedo que não é um grande filme, mas a mim tocou o coração. Antes de qualquer coisa, fique claro que não há “relação amorosa” entre Jesus e a personagem-título; o que o filme faz é concebê-la entre os apóstolos de Cristo, como fiel discípula que o segue junto com Pedro, Judas, Tomé e os demais. Embora sempre haja certa margem de ambiguidade, me parece que o filme evita as tentações ideológicas, como a de exaltar a figura feminina a partir de valores modernos. Creio mesmo que o filme transporta para Maria Madalena muito do que caracteriza Maria, a Nossa Senhora. No filme, Maria Madalena é a discípula que melhor ouve Cristo, é a que melhor lhe compreende, a que melhor aceita o que parece insensato em suas escolhas, é a que melhor sabe esperar. Madalena é a mais fraca, a mais passiva, a menor entre todos eles. Mas, na lógica paradoxal dos Evangelhos – em que fraqueza é força, pequenez é grandeza, pobreza é abundância - Madalena é a mais preparada para o Reino. Por isso, acho o filme essencialmente anti-gnóstico, contra o mistério domesticado, que é uma tentação muito presente em outros discípulos, que querem guiar Jesus ou desejam o Reino para agora, para já. Em termos estéticos, o filme tem cenas memoráveis, como a da reanimação de Lázaro e como o rosto iluminado da protagonista ao ver o Ressuscitado. 


3º) O dia depois (Hong Sang-Soo) 
O sul-coreano emplaca o segundo ano consecutivo nas minhas preferências, sobretudo graças à interpretação de Kim Min-Hee e às suas falas cheias de uma lucidez agridoce. É filme que chega ao ponto de perguntar, com todas as letras: “por que você vive?”; no entanto, não lhe falta leveza e um olhar contemplativo de serenidade, que simultaneamente repousam e agitam o espírito. 


4º) A balada de Buster Scruggs (irmãos Coen) 
Considero-o bastante irregular. Embora veja aspectos brilhantes em todas as histórias, meu coração fica quase inteiramente preso ao episódio da moça na caravana. Se é verdade que todos os episódios refletem sobre a morte, penso que essa história trabalha sobretudo com a descoberta da alegria de viver e do feliz acaso de um encontro – bem como com a irônica tragédia dos seus inversos, a insegurança de viver e o infeliz acaso de um encontro, que dão à morte o seu peso terrível e insondável. 


5º) Trama Fantasma (Paul Thomas Anderson) 
De tão perfeito, é difícil amá-lo. A mim o espírito do filme não convence, o que não me impede de ficar fascinado com o seu aspecto, seus modos, sua elegância, seu porte, seu perfume inconfundível de cinema feito com encantamento e excelência. 


6º) 15h17: Trem para Paris (Clint Eastwood) 
Em um filme bastante semelhante ao seu anterior – “Sully: o herói do Rio Hudson” –, Eastwood continua mostrando que sabe como contar uma história. Retornam os elementos e símbolos cristãos, ausentes no filme anterior, embora o assunto principal continue sendo o mesmo: o livre arbítrio. Independente de em quê acreditamos, o fato mesmo de que decidimos agir é um enigma – enigma que pressupõe sempre alguma forma de esperança. Pena que o filme tenha tantas parcelas de banalidade imagética e estética; ainda que se possa dizer que essa é a proposta estética deliberada, creio que falta maior cuidado com a imagem. 


7º) A melhor escolha (Richard Linklater) 
Bastante medíocre e limitado, mas suficientemente espirituoso para ser lembrado com alguma saudade, graças ao entrosamento divertidíssimo entre Steve Carell, Bryan Cranston e Laurence Fishburne. Tem uma cena em que eles jogam conversa fora, falando bobagens mesmo, que me deixou com aquela dor muscular na barriga, que acontece quando rimos demais (ou quando tentamos segurar o excesso de gargalhadas, para não atrapalhar no cinema). Já é o suficiente. (E fico me perguntando se, apesar da mediocridade, não seja talvez melhor do que o aclamado Boyhood, do mesmo diretor). 

domingo, 31 de dezembro de 2017

10 filmes de 2017

Podem não ser os dez melhores filmes do ano, mas são os que chegaram mais perto do meu coração. [Aviso de antemão que não assisti alguns filmes que, desconfio, me seriam de muito agrado, principalmente “Z – A Cidade Perdida” e “Além das Palavras”]. Vamos à lista, em ordem de preferência:

1º) La La Land (Demian Chazelle)
Adorável abordagem sobre o páthos romântico. O poder dos temas musicais ao piano de evocar a grandeza e a miséria do amor de Mia e Sebastian é encantador e desesperador, a um só tempo. Casablanca revisitado – este me parece o paralelo mais fecundo, e não com os musicais.

2º) Manchester à beira-mar (Kenneth Lonergan)
A maior força do filme está no seu protagonista, Lee, que transmite uma espécie de dignidade baseada numa experiência trágica de vida. Como um náufrago em terra firme, se defronta com o fato de que não basta agir como se tudo dependesse de uma fé otimista na bondade natural humana. Lee vislumbra o abismo de ter a consciência de que nem tudo depende da nossa vontade.

3º) Paterson (Jim Jarmusch)
Novamente, um personagem raro e precioso. Paterson cultiva sua liberdade interior sem se deixar oprimir pela aparente banalidade da vida cotidiana. Inspiradora jornada sobre como sentir-se em casa no universo. Escrevi mais sobre o filme neste ensaio aqui.

4º) De canção em canção (Terrence Malick)
De canção em canção, alimenta-se o som e a fúria a fim de ludibriar o tédio e o vazio. Poderemos viver uma vida verdadeira deste modo? Não é esta uma morte em vida? Será possível renascer, de algum modo? Malick segue pintando seu monumental afresco no teto de sua catedral cinematográfica – representando, filme após filme, o drama espiritual do nosso tempo e da nossa condição.

5º) Até o último homem (Mel Gibson)
Não apenas o personagem é extraordinário, mas a ambientação do campo de batalha é digna de um inferno dantesco. Neste inferno, porém, Desmond Doss entrará sem abandonar toda a esperança, o que levará sua fé e caridade ao limite.

6º) Silêncio (Martin Scorsese)
Se a questão é a fé levada ao limite, Scorsese e Shusaku Endo (o autor do romance) dão a palavra final – ou, melhor dizendo, o silêncio final. Creio que o mais interessante é pensar na importância fundamental de Kichijiro – o traidor, o fraco, o errante, o demasiado humano – dentro dos contextos religiosos do budismo e do cristianismo. Somos mais Kichijiro do que gostaríamos de admitir; e, no entanto, nesta queda se manifesta uma verdade elementar da condição humana.

7º) Frantz (François Ozon)
Em cada cena há algo a ser descoberto, em cada sequência há uma revelação, o desvendar de pequenos segredos que dão ao filme o seu tom intimista – embora o estilo seja seco, sóbrio, contido, com toques de mistério e estranhamento que beiram o surreal, mas sem perder o controle. Talvez tenha faltado apenas uma grande cena para que pudesse ser uma obra-prima.

 8º) Jackie (Pablo Larraín)
Irregular, deixa de ser um mero psico-drama a partir da segunda metade, quando entra na narrativa o personagem do padre; a partir daí, o filme transcende o ego da protagonista, e a discussão relativista sobre “o que é a verdade”, disputada com o jornalista, ganha uma grandeza verdadeiramente madura (tão bem encarnada por John Hurt, que faleceu em seguida). Verdade que está para além dos fatos (portanto para além da compreensão do jornalista); para além da psicologia (portanto para além dos limites da protagonista); para além daquele que, após questionar “o que é a verdade?”, e, não sabendo reconhecê-la, disse “lavo as minhas mãos” – ou seja, para além do poder político (o ambiente que cerca Jackie). Verdade que devemos buscar quando estamos sozinhos, no escuro, e nada parece fazer sentido.

9º) Na praia à noite sozinha (Hong Sang-soo)
O amargor e a melancolia por não encontrar o Amor. Nos momentos de ébria franqueza, a protagonista exige, irascível, que os outros manifestem um amor perfeito; teme uma morte inglória, de uma vida que acaba sem descobri-lo. O uso reiterado do belíssimo Quinteto de Cordas de Schubert dá o tom, entre a melancolia e a consolação, com uma sutil sugestão de que o amor ausente apenas não se mostra, mas está aí.

10º) Os Cowboys (Thomas Bidegain)
Estreia de Bidegain como diretor, tendo a ousadia de abordar alguns aspectos “politicamente incorretos” do islamismo radical. Mas o que toca o coração e o faz entrar nesta lista é, acima de tudo, a aguardada cena final – talvez a melhor do ano – construída inteiramente por olhares e silêncios, dando ao filme um desfecho muito marcante e significativo.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

10 filmes de 2016

Eis minha seleção de filmes de 2016, com larga vantagem para os três primeiros colocados:

1º) A Academia das Musas (José Luis Guerín)
Praticamente um experimento narrativo que retoma o vigor das tradições mito-poéticas e filosóficas da Europa mediterrânea.


2º) A Luz Entre Oceanos (Derek Cianfrance)
Um melodrama cuja força se encontra, mais do que nas emoções que desperta, no uso de ricas metáforas de cunho religioso. A crítica progressista, entorpecida e insensível neste aspecto, limitou-se a reconhecer as deslumbrantes paisagens à la Turner e Caspar David Friedrich.


3º) 45 Anos (Andrew Haigh)
Ok, o filme é do final de 2015, mas caiu em 2016 para mim. Sóbrio, intimista, sem soluções fáceis. Se é verdade que o final de A Luz Entre Oceanos pode ser considerado uma concessão para as lágrimas açucaradas do grande público, aqui restam as lágrimas amargas de desilusão de Charlotte Rampling, num contraste desconcertante com a doçura romântica de “Smoke Gets In Your Eyes”.


4º) O Vale do Amor (Guillaume Nicloux)
O sentido do filme se revela em paralelo com o sentido da sua trilha sonora – a assombrosa composição “The Unanswered Question”, de Charles Ives –, sondando o mistério da existência a partir do trompete que rompe a placidez das cordas ao introduzir a questão do inefável, seguido pelos demais sopros, progressivamente dissonantes, mal articulando tentativas de respostas, que se tornam cada vez mais incoerentes até que parecem perder completamente o sentido.


5º) Sully (Clint Eastwood)
Numa narrativa impecável, Eastwood parece apontar que, se o Sniper Americano foi o último herói de guerra, Sully é o herói possível em tempos de crise de consciência e de perseguição àqueles que não seguem as cartilhas pré-determinadas.


6º) Cavaleiro de Copas (Terrence Malick)
Como explicar que o mais recente filme de um dos maiores diretores vivos, com um elenco que inclui Christian Bale, Cate Blanchett e Natalie Portman, não seja lançado nos cinemas do Brasil (apenas em meios como o Netflix)? Como bem observou Martim Vasques da Cunha, as narrativas de Malick estão em progressivo processo de implosão, acompanhando o colapso espiritual da modernidade. Se é verdade que isso dificulta a apreciação por parte do grande público – e, novamente, da crítica progressista –, também é verdade que estamos sendo privados de acompanhar no ambiente apropriado das salas de cinema uma das abordagens mais lúcidas e originais do cinema contemporâneo e uma reflexão essencial sobre a condição humana.


7º) Táxi Teerã (Jafar Panahi)
A narrativa apresenta uma proposta experimental semelhante a de A Academia das Musas, mas aqui formando um painel social de Teerã a partir das tribulações cotidianas de seus habitantes. Nos seus melhores momentos, revela um frescor e uma espontaneidade que estimulam nossa capacidade universal de empatia, reforçando, assim, um dos tantos potenciais do cinema – e das narrativas, de modo geral.


8º) Depois da Tempestade (Hirokazu Koreeda)
Algumas das virtudes dos filmes de Koreeda são também fontes de suas fraquezas. Afinal, a contrapartida de abordagens sutis, delicadas, minimalistas, quase desprovidas de páthos, é a de um certo distanciamento entre os personagens e o coração do espectador. Será tão somente o reflexo do distanciamento entre as culturas do ocidente e do extremo-oriente? Seja como for, neste filme o diretor encontrou melhor equilíbrio entre a doçura e a aridez, entre a impassibilidade e a angústia.


9º) Nossa irmã mais nova (Hirokazu Koreeda)
Koreeda, de novo. Se este filme não é tão bem equilibrado quanto o Depois da Tempestade, o encanto que emana das quatro protagonistas é de uma preciosidade rara. Ainda assim, o resultado é, novamente, uma obra um tanto inofensiva, no sentido de não atingir as camadas mais profundas de nossa sensibilidade.


10) Café Society (Woody Allen)
Alguém já disse que gostaria de, após deixar esta vida, reencarnar neste filme. É compreensível, considerando a dignidade e o charme dos personagens – principalmente a adorável mistura de astúcia e decência encarnada em Kristen Stewart. O romantismo desiludido deixa, ao final, um travo meio amargo que salva o filme de se tornar perfunctório.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Dá o que pensar

As palavras de Nietzsche são de 1888, mas o exercício da liberdade interior é atemporal. Saberemos nos responsabilizar por "tarefas demoradas"?

"Nossas instituições não prestam mais: acerca disso somos unânimes. Mas isso não se deve a elas, e sim a nós. Depois que perdemos todos os instintos dos quais brotam instituições, perdemos as próprias instituições porque nós não prestamos mais para elas. O democratismo sempre foi a forma decadente da força organizadora [...] Para que existam instituições, é preciso existir uma espécie de vontade, instinto, imperativo, que seja antiliberal até a maldade: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos, de solidariedade entre séries de gerações para frente e para trás in infinitum. Caso exista essa vontade, se funda algo como o imperium Romanum [...] O Ocidente inteiro não possui mais aqueles instintos dos quais brotam instituições, dos quais brota futuro: talvez nada desagrade tanto ao seu 'espírito moderno'. Vive-se para hoje, vive-se muito depressa – vive-se de modo muito irresponsável: precisamente isso é chamado de 'liberdade'. Aquilo que faz das instituições o que elas são é desprezado, odiado, repudiado: basta ouvirem a palavra 'autoridade' e as pessoas acreditam estar na iminência de uma nova escravidão. [...] Um testemunho é o casamento moderno. É algo evidente que o casamento moderno perdeu toda a racionalidade: o que não constitui uma objeção ao casamento, mas à modernidade. A racionalidade do casamento - ela se encontrava na responsabilidade jurídica exclusiva do marido: assim o casamento tinha um centro de gravidade, enquanto hoje ele manqueja das duas pernas. A racionalidade do casamento - ela se encontrava na sua indissolubilidade por princípio: assim ele tinha uma voz que se sabia fazer escutar frente ao acaso do sentimento, da paixão e do instante. Ela se encontrava igualmente na responsabilidade das famílias pela escolha dos noivos. Com a crescente indulgência em favor do casamento por amor, foi eliminada terminantemente a base do casamento, aquilo que faz dele uma instituição. Em hipótese alguma se funda uma instituição sobre uma idiossincrasia, não se funda o casamento, conforme já foi dito, sobre o 'amor' - ele é fundado sobre o impulso sexual, sobre o impulso de posse (mulher e filho como posse), sobre o impulso de domínio, que organiza duradouramente a menor das formações de domínio, a família, que precisa de filhos e de herdeiros para conservar também fisiologicamente uma medida alcançada de poder, influência e riqueza, para preparar tarefas demoradas, para preparar a solidariedade de instintos entre os séculos. O casamento como instituição já compreende em si a afirmação da maior, da mais duradoura forma de organização: se a própria sociedade como um todo não pode se responsabilizar por si mesma até as mais remotas gerações, o casamento perde qualquer sentido. - O casamento moderno perdeu o seu sentido - logo, ele é abolido."

[Crepúsculo dos Ídolos, p. 111-113, ed. L&PM, trad. Renato Zwick]

"Lady Agnew" - Sargent, 1893

sábado, 5 de março de 2016

A propósito

O embate entre vacas profanas e vacas sagradas está emporcalhando tudo. Com Nietzsche, porémpodemos almejar uma moral que não seja de rebanho:

"Cristão e anarquista. – Quando o anarquista, na condição de porta-voz das camadas declinantes da sociedade, exige "direito", "justiça" e "direitos iguais" com uma bela indignação, apenas se encontra sob a pressão de sua incultura, que não consegue compreender por que realmente ele sofre – do que é pobre, de vida... Ele é dominado por um impulso causal: alguém deve ser culpado por ele estar mal... Só a "bela indignação" já lhe faz bem, vociferar é um prazer para todos os pobres-diabos – isso dá uma pequena embriaguez de poder. Já basta a queixa, o queixar-se, para dar à vida um encanto pelo qual se suporta vivê-la: há uma dose sutil de vingança em toda queixa; a pessoa censura aqueles que são diferentes, como se isso fosse uma injustiça, um privilégio ilícito, por uma situação ruim, às vezes até por sua ruindade. "Se sou canaille, também deverias sê-lo": é com base nessa lógica que se faz revolução. – O queixar-se não vale nada em caso algum: ele provém da fraqueza. Atribuir sua situação ruim a outros ou a si mesmo – a primeira atitude é própria do socialista, a última, do cristão, por exemplo – não faz qualquer verdadeira diferença. O que há em comum, digamos o que há de indigno nisso, é que alguém deva ser culpado por sofrermos – em resumo, que o sofredor prescreva para seu sofrimento o mel da vingança. Os objetos dessa necessidade de vingança, enquanto uma necessidade de prazer, são motivos de ocasião: o sofredor encontra motivos para arrefecer sua pequena vingança em toda parte – se for cristão, repito, ele os encontrará em si... O cristão e o anarquista – ambos são décadents. – Mas também quando o cristão condena, calunia e emporcalha o mundo, ele o faz a partir do mesmo instinto que o trabalhador socialista condena, calunia e emporcalha a sociedade: mesmo o "Juízo Final" ainda é o doce consolo da vingança – a revolução, tal como o trabalhador socialista também a espera, só que imaginada para um futuro mais distante... O próprio "além" – para que um além, se ele não fosse um meio de emporcalhar o aquém?..." 


[Crepúsculo dos Ídolos, p. 102-103, ed. L&PM, trad. Renato Zwick]



foto de Hannah Starkey

domingo, 3 de janeiro de 2016

Breves comentários sobre algumas leituras de ficção

Franny e Zooey (J.D. Salinger)
Salinger invoca Buda, Jesus, o Tao, Chuang-Tzu, a Nuvem do Desconhecimento; mas não deixa de invocar também o consumo em massa, a televisão, as celebridades, a indústria da comunicação, toda a apaixonante banalidade e burburinho do mundo. O gênio de Salinger é capaz de equacionar as grandes questões do espírito humano com as trivialidades da vida mais comezinha - e tudo isso por meio de uma prosa solta, humorada, sagaz, com grande desenvoltura. Permita-se ler, sem esperar nada em troca. Descubra quem é a Senhora Gorda.



O jogo das contas de vidro (Hermann Hesse)
Magistral utopia que dá forma ao sempiterno desejo de integração do indivíduo no Todo, da união mística com o Uno, de atingir o centro Absoluto de toda a variedade e diversidade da cultura humana, conciliando as tradições espirituais do Ocidente e do Oriente. A música, aqui, é a mais sublime das experiências - e Bach soa quase como redentor da humanidade.



O idiota (F. Dostoiévski)
Se a compreensão é uma espécie de milagre, alguém que tão engenhosamente põe em funcionamento o mecanismo da compreensão só pode ser um grande Criador. Foi muito difícil largar "O idiota", porque me afeiçoei aos personagens - e o afeto é fruto da compreensão que se aloja diretamente no peito. Eis de que forma a literatura é um cuidado da alma, uma epifania humanista, um sopro de esperança. Em Dostoiévski, a compreensão se dá pela aceitação de impulsos muito pouco razoáveis, mas plenamente humanos. "O idiota" é também um ensaio sobre a beleza - embora a palavra final seja a da loucura.


Judas (Amós Oz)
O que vai se revelando é a dor remoída no íntimo de cada personagem. A experiência da dor, da perda, do fracasso, da derrota, que cada um carrega consigo e que não poder ser compartilhada com ninguém. Desde a dor lancinante de Jesus na cruz, até os horrores das guerras na Palestina, passando pela figura-chave de Judas desesperado e desiludido, somos estimulados a refletir sobre o inevitável fracasso que faz parte da condição humana. Apesar de tudo, não é um romance pesado. Ocorre apenas que o autor não faz concessões à ideia de que o mundo tem conserto.

Às avessas (Joris-Karl Huysmans)
Este foi o livro que envenenou a alma de Dorian (de "O retrato de Dorian Gray", Oscar Wilde). Trata-se de uma obra fascinante, mas difícil de se gostar. A neurose afetada de Des Esseintes é contaminante. Por mais atroz que isto seja, como deixar de louvar um romance que aniquila a normalidade com tamanha propriedade, com tamanha personalidade, com uma imposição de espírito tão recalcitrante? Não há muitos Dostoiévskis por aí capazes de algo assim. E não há muitos Houellebecqs capazes de se apropriar do seu legado em plena era do politicamente correto.


A Sonata a Kreutzer (L. Tolstói)
O tom exaltado do monólogo, pleno de uma lucidez implacável com auto-ilusões e de uma franqueza radical com a moral humana, remete ao homem do Subsolo de Dostoiévski, bem como aos protagonistas de Houellebecq - para François (de "Submissão"), uma saia curta pode mudar tudo na vida de um homem; para Pózdnichev, o narrador da obra em foco, o que considera-se como amor não passa de uma malha justa no corpo de uma mulher. A principal limitação desta novela é o fato de que quase não há contraponto ao monólogo. De qualquer forma, a discussão que propõe sobre temas como a moral, o amor, o sexo, o prazer, a felicidade, o ego, a beleza, a verdade - e até a música! - é arrebatadora na sua capacidade de relativização e no seu ceticismo com relação à condição humana.